Foto: Cabras - João de Matos
Era uma vez um rapazinho, de seu nome Manuel. Era o mais velho dos seis irmãos e os pais eram muito pobres. Nos tempos difíceis que corriam, tinham dificuldade na alimentação. O trabalho que havia era pouco e sazonal, e não havia dinheiro suficiente para alimentar os filhos. Durante a noite, os pais pensaram que o melhor seria o Manuel ir trabalhar. Mas como, se ainda era uma criança? Deram voltas ao sentido, a pensar que tipo de trabalho é que ele poderia fazer. Sempre é menos uma boca cá em casa. É para o bem dele.
- Não achas, Esperança?
- Ai homem, mas então o nosso Manuel….ainda tão pequenino…meu rico filho…
- Já sei, vai guardar cabras. Vai para ajuda do ti Inácio. Ainda ontem ouvi o Chico das Lebres dizer na taberna do Zé Diogo que o ti Inácio, que agora anda no Monte da Misericórdia, precisa lá dum “ajuda”. É bom homem e trata bem os ajudas. Pelo menos não lhes bate, como muitas bestas que por aí há. Vais ver que também vai tratar bem o nosso Manuel. Não chores mulher. Deixa lá…
- Deus queira que sim. Eu também acho. Ele é boa pessoa. Achas que o ti Inácio quer lá o nosso Manuel? E a escola? O nosso filho já não vai à escola?
- Ó mulher, deixa lá a escola, porque primeiro está a barriga. Quanto ao ti Inácio, vais ver … Que diabo, ele precisa lá dum “ajuda”. Vais ver… Amanhã vou falar com ele. E assim foi.
O pai do Manuel, logo ao romper do dia, dirigiu-se ao monte da Misericórdia para falar com o ti Inácio. Uma vez que ainda era cedo, encontrou-o no bardo das cabras. Estava mesmo a acabar de varrer o bardo, para sair com o gado para a pastagem. O bardo é constituído por feixes de arbustos como a esteva, aloendro, piorno e outro tipo de mato. É uma espécie de paliçada em forma de círculo e com uma entrada virada a nascente. Com a chegada da Primavera, o bardo é substituído por outros portáteis, constituídos por cancelas de ferro com cerca de três metros de comprimento por um metro de altura. Este tipo de bardo, é mudado de vez em quando, para melhor aproveitamento do estrume.
- Bom dia ti Inácio.
- Ó Joaquim, bom dia. Então homem, o que é que te trás por cá, assim tão cedo?
- Sabe o que é, ti Inácio. Tenho lá o meu Manuel, isto está mau…não há trabalho… não se ganha nada… nem dá para açorda…
- E então homem, desembucha.
- Ontem ouvi o Chico das Lebres dizer, lá taberna do Zé Diogo, que precisava cá dum ajuda e então olhe, vai daí, disse à minha Esperança, qu’isto era capaz de ser bom para o meu Manuel. E olhe, aqui estou, a ver se o ti Inácio cá mete o rapaz para seu ajuda. Você não o conhece, mas asseguro-lhe que não se arrepende. É um bom rapazinho.
- Ora essa! Joaquim. Não duvido. Basta tu dizeres e ser teu filho. Até vem mesmo a calhar. É que estou mesmo a precisar. Então quando é que o rapaz pode vir? Combinamos o dia e vem cá trazer o rapaz. Quando é que te dá jeito?
- Então está bem. No fim do mês, está certo? Isto são mais dois ou três dias, e entra a mês certo.
- Está combinado, vem cá trazer o rapaz. Já sabes qual é o ordenado? Claro, ainda não te disse. São setenta escudos. Sei que é pouco, mas é o que por aí se paga. Manda-lhe uma manta, que isto aqui à noite arrefece. Chega uma manta. Se tiver frio, tenho ali uma pele de ovelha, que sempre ajuda. É melhor do que uma manta, mas…uma manta, sempre é uma manta.
O Manuel tinha apenas dez anos. Não passava duma criança. Disse aos pais que não queria ir para o campo guardar cabras, tinha medo da noite e dos lobos. Queria antes brincar com os amigos. Queria jogar a bola e ir aos ninhos ver os passarinhos, ir para a ribeira nadar e ver os peixinhos.
- Mas os pais, com muita paciência, sabe-se lá o que lhe ia na alma, convenceram-no a ir.
Quando chegou o dia combinado com o ti Inácio, o pai foi levar o Manuel ao monte da Misericórdia, muito longe de casa, e logo na primeira noite dormiu numa choça, numa cama muito rudimentar, ao lado do cabreiro. No chão, estava estendida uma esteira de buinho. Era esta a sua cama, e tão pobre, que nem tinha lençóis. Era tudo muito áspero e frio, mas o pior que tudo, eram as muitas saudades dos irmãos e dos pais.
- Vá lá Manuel, levanta-te para ires ao monte buscar a açorda para o almoço.
Mas… ainda é de noite? Eu tenho medo.
- Medo? Qual quê, qual carapuça. Aqui não há medos e ninguém te faz mal. Vai lá. Olha vais aqui por aquela vereda que te ensinei ontem, vais sempre em frente, apanhas a estrada, andas mais um pouco e estás no monte. Vais ver que não é difícil. Tem cuidado, não te percas no caminho.
O Manuel, a muito custo, ainda cheio de sono, levantou-se, e depois de o cabreiro lhe ensinar o caminho, lá foi buscar a açorda.
Chegado ao monte, a cozinheira, perguntou-lhe como se chamava:
- Sou o Manuel.
- Então quantos anos tens Manuel?
- Tenho dez.
- Ah sim. Está bem Manuel. Então aqui tens o caldo da açorda. O ti Inácio tem lá pão, miga umas sopas e pronto. Tenham bom proveito. Tapou a marmita de esmalte azul, e disse-lhe:
- Vai Manuel, leva a açorda ao ti Inácio antes que arrefeça. Tem cuidado, vê lá não caias para não a entornares, que isto ainda é de noite.
O Manuel, saiu do monte, pela estrada de terra batida. Depois apanhou a vereda até ao curral das cabras e à choça onde o cabreiro o aguardava para o almoço ao romper do dia. Quando saiu do monte ainda era de noite. O Manuel, como tinha medo, de andar por caminhos que desconhecia e por ser ainda de noite, de tanto bandear a marmita, quando chegou junto do cabreiro, a açorda não tinha praticamente azeite. O que lhe valeu um grande reparo por parte do cabreiro, pois a açorda era só água. Por muitos dias se repetiu esta cena, até que o Manuel, se habituasse à sua nova vida e deixasse de ter medo de andar no campo, de noite sozinho, a ouvir o canto das corujas. Tudo lhe metia medo. Pudera, o rapazinho nunca tinha saído de casa.
Entretanto o Manuel ia crescendo, crescendo, até se fazer um jovem. Começou a pensar que aquela vida não lhe servia para ele. Queria uma vida melhor. Entretanto, foi trabalhar para outro lado. Arranjou outra profissão, onde não andasse de noite, e que tivesse outro futuro mais promissor.
O Manuel, trabalhava durante o dia e à noite ia estudar. Tirou um curso secundário, e matriculou-se na Universidade em Lisboa no curso de medicina. Queria ser médico. Entretanto apaixonou-se por uma colega, paixão essa que resultou num autêntico fracasso. O desgosto de amor foi tão grande, que deixou de ter cabeça para continuar a estudar, entregando-se ao rei Baco. O vinho tomou conta dele, tornando-o numa pessoa irascível. Nunca chegou a acabar o curso, embora lhe chamassem doutor, e regressou à sua aldeia. Tinha barba rala, alto, magro e pele trigueira, o que fazia dele uma figura típica da aldeia. De porte altivo, encarava com arrogância e desassombro qualquer pessoa, dando a impressão que nadava em dinheiro… Durante o dia, entrava várias vezes nas tabernas a matar o bicho. No fundo, era boa pessoa, nunca se esqueceu do seu passado e ajudava todos por igual, quer fosse rico ou pobre, não lhe cobrando um tostão. Vivia daquilo que lhe queriam dar.
- Deixe lá ver essa língua… e esse pulso. Isto está mau!
- Oh! Senhor doutor…não me diga que vou morrer!
- Não…mas anda lá perto, digo-lhe eu! E não me contradiga, ouviu bem? Você não sabe o que diz. O que é que comeu hoje?
- Ele, senhor doutor - Comeu uma torradinha com banha de porco e café… dizia a mulher, metendo-se na conversa.
- Cale-se. Não diga asneiras, você é como ele. Isso é lá coisa que se coma? Manteiga de porco ou banha de porco...isso é uma porcaria. Isso é lá comer de gente?
- Ai senhor doutor, não me diga que vou morrer.
- Ai senhor doutor, não me diga que o meu José vai morrer, meu Deus.
- Cale-se já disse. O seu marido não morre porque estou eu aqui. Fique descansada que não vai além para o cemitério, tenha a certeza disso.
- Veja como ele está vermelhinho, coitadinho do meu José. Está ardendo em febre! Meu pobre marido, coitadinho!
- Ardendo em febre? Você sabe lá o que diz. A febre, é coisa que se tenha assim sem mais nem menos. Você sabe lá o que é isso. Deixe-se de parvoíces, sua alma de marmelada. Você até me faz secar as goelas! Não tem pr’ai uma gota de vinho para me matar a sede que me tem feito com essas parvoíces que tem dito? Febre! A gente sempre ouve com cada uma a esta gente! Gente esta! …Venha daí esse vinho!
- Foi o meu filho, buscá-lo à taberna do Zé Diogo. Tenha paciência que o quartilho já vem.
- Mas diga lá senhor doutor, o que é que hei-de fazer ao meu José. Que está tão doente?
- O que lhe há-de fazer? Olhe, para começar deixe-se de lamúrias ao pé de mim. Que isso não lhe faz nada, só atrapalha. Ferre-lhe com uma cataplasma, aqui na boca do estômago, de mostarda e absinto; e à noite um escalda-pés de água quase a ferver, e obrigue-o a tomar um quartilho de vinho branco com mel bem quente. É preciso que ele sue que nem um cavalo, ouviu o que eu disse?
- Sim, senhor doutor.
- Venha de lá esse vinho, que está a perder qualidades e a sede a aumentar-me esta secura que tenho aqui no esófago. Você sabe o que é o esófago? Claro que não sabe, como é que pode saber se nunca estudou? E andam isto com os pés pelo chão. Não passa duma ignorantona. Deite lá aqui mais uma gota de vinho, e daqui a pouco passe lá pela minha casa para trazer uma galinha que ontem me deram. Faça uma canja pró seu marido, ele o que precisa é de comer.
- Ora, ora, senhor doutor mas isso é para o seu jantar.
- Deixe lá dessas palermices, que eu cá me desenrasco, ainda lá tenho pão e queijo.
- Deus o abençoe, senhor doutor…
- Sim, sim. Lérias e mais lérias. Adeus até amanhã.
- Sim, senhor doutor e faça o favor de me dizer quanto é que eu devo.
- Quanto me deve? Ora essa, não me deve nada! Vá brincar para outro lado. Não basta eu ter salvado o seu marido da morte, garanto-lhe eu sua pateta, e ainda você me quer pagar! Ora essa, então a minha ciência é coisa que qualquer badameco me pague? Ora esta hein?
Nunca cobrou um tostão pela sua clínica, fosse a quem fosse. Se os seus remédios não salvavam, também não matavam, limitando-se na maioria dos casos a fazer transpirar o doente. Todos gostavam do Manuel a quem chamavam doutor. Fosse rico ou pobre, todos se serviam dos seus serviços, achavam graça ao seu mau génio e à sua arrogância, mas apreciavam-lhe as boas qualidades humanas.
Luís de Matos