Recordo-me do tempo em que toda a herdade da Vila Velha era um azinheiral cerrado. Começava logo ali por detrás do cemitério e estendia-se desde a estrada nacional nº 255, ao longo da ribeira do Lucefécit, até ao ribeiro de Alcaide. Hoje, devido ao plano de regadio da barragem do Lucefécit, já não existem Azinheiras nem ninhos de pássaros, e toda a flora desapareceu.
Recordo-me de ir aos ninhos com outros rapazes da minha idade. Achava os ninhos com ovos de picanço e de melro. Deixava-os ficar para que os pais criassem os filhos, e quando uns dias depois lá voltava à sua procura, os passarinhos já tinham voado. Deixei de subir às azinheiras para procurar os ninhos escondidos na densa ramagem. Deixei de ver os lagartos que comigo disputavam a posse dos ninhos e do seu conteúdo, quer fossem ovos ou filhotes ainda com penugem. Deixei de os ver no chão, junto ao tronco ou em qualquer pernada da azinheira à espreita do sol. Deixei de os ver a fugir pela azinheira acima para se esconderem no buraco do tronco de alguma árvore mais velha, ou correr pelo campo fora, até lhe perder o rasto no meio das ervas ou de arbustos, ou ainda porque tinham encontrado qualquer buraco no chão para se esconderem.
Recordo-me do tempo em que, juntamente com outras crianças, ia ao azinhal da Vila Velha apanhar bolotas, que colocava numa bolsa, para a engorda do bácoro, que esperava por elas no chiqueiro que existia no quintal. Quando desconfiávamos que vinha o guarda da herdade em nossa perseguição, fugíamos a sete pés, mas a bolsa das bolotas é que não largávamos custasse o que custasse.
Recordo-me do ti Manuel “do leite”, empurrando um carro de mão com dois cântaros de zinco de vinte litros cada um, mais as medidas (de litro, meio litro e um quarto de litro) andar a vender leite de porta a porta. Recordo-me de ouvir as vizinhas dizer: olha hoje há peixe; vem aí o Mira do Alandroal. Deslocava-se inicialmente com uma motorizada e mais tarde com uma carrinha de caixa fechada e de cor vermelha já queimada do sol, percorria as ruas a vender peixe (cação, “jaquinzinhos”, carapau do alto, pescada e sardinhas); do Peças do Alandroal, com uma carrinha de caixa aberta vender fruta e hortaliças de porta a porta, e as mulheres sempre com a velha ladainha “ist’aqui é um sequêro, nãn há nada”. Recordo-me do ti Ramalho, de Terena, vender sardinhas também de porta a porta e de ir a sua casa na rua Direita, comprar cinco sardinhas (não se podia comer mais do que uma sardinha cada um lá em casa) e já era um “luxo”, pois havia quem comesse só meia sardinha.
Recordo-me do ti Laurentino, homem baixo e barriga razoável, de calças descaídas e presas com um atilho a servir de cinto, com um carrinho de mão a vender hortaliça pelas ruas de Terena. Homem muito simpático e os seus pregões faziam as delícias das crianças. Morava mais ou menos a meio da Rua das Casas Novas, em Terena.
Recordo-me do mestre Zé da Muda, morava na casa mesmo ao lado da minha. Era sapateiro e tinha a oficina mesmo em frente da minha casa. Tinha por hábito mandar as crianças, buscar a pedra de afiar os martelos ao mestre “Erva Agrião”, na rua Direita, que era na rua paralela à rua onde eu morava, e lá vínhamos nós, carregados com um enorme seixo do Guadiana onde o sapateiro batia a sola. Chegados ao mestre Zé da Muda, dizia-nos que não era aquela, e voltávamos a levar a que tínhamos trazido. Por sua vez, o mestre “Erva Agrião” carregava-nos com outra pedra ainda maior. É evidente que só nos enganaram uma vez.
Recordo-me do tempo em que chovia sem parar, durante semanas seguidas e de o meu pai me contar estórias à roda do lume de chão; nas noites de Verão, ver a vizinhança na rua ao fresco, sentada nas cadeiras de buinho, enquanto os filhos jogavam com uma bola de trapo e de vez em quando lá ia a cabeça do dedo do pé; de numa esteira de buinho, dormir ao fresco, na rua, ao lado da porta e adormecer a ver as estrelas.
Recordo-me do tempo em que ia nadar para a ribeira do Lucefécit, sem medo de apanhar qualquer infecção. Costumava ir para o Pego das Barreiras, que era largo e fundo, ou para o Pego do Recovado. Até se dizia que uma corda de carreiro atada a uma pedra não lhe chegava ao fundo, o que só podia ser uma grande mentira, ou ainda para os pegos junto ao poço da Vila Velha, também conhecido pelo poço do Morais, que ainda hoje lá existe com a sua velha “cegonha”.
Recordo-me do tempo em que, juntamente com os meus primos e outros gaiatos mais ou menos da minha idade, corríamos todos os pegos da ribeira, nadando aqui e ali, pescando à lapa, à procura de cágados ou a fazer apostas para quem tinha mais pontaria para apanhar maior número de rãs à pedrada, o que era sempre muito difícil, senão impossível, a concretização de tal proeza. Confesso que nunca tive grande pontaria para acertar no pobre animal, embora houvesse quem fosse mestre na arte certeira de atirar a pedra.
Recordo-me dum ano, pelas férias grandes, ir guardar perus para o monte da Barranca de Baixo. Naquela época, o monte era o coração da lavoura. No silêncio das suas paredes brancas ficaram apenas recordações ricas de uma lavoura tradicional. O monte encontra-se desabitado, uma vez que o pessoal da lavoura fixou residência em Terena e no Alandroal. Isto deve-se ao progresso com o seu cortejo de “benefícios” e o dom de acabar com a lavoura tradicional. Na soleira da porta, o gato espreguiçava-se ao sol ou deitava-se a desfrutar dos raios do maravilhoso astro. Havia uma árvore que, na sua sombra estava um carro de parelha com uma pipa que abastecia de água o monte. Havia também o pombal, essas meigas aves que simbolizam a paz, que com o seu canto nos pareciam dizer que aqui no monte a paz é verdadeira.
Todas as manhãs o meu parente Ladislau, que era o cozinheiro e responsável por tudo o que se passava no monte, me dizia para levar os perus a dar uma volta até à ribeira do Lucefécit, e que ao meio-dia, estivesse no monte para almoçar. Sempre soube que ele tinha um especial carinho por mim. Hoje, apesar dos seus noventa anos, ainda conseguimos manter a nossa relação de amizade que vem desse tempo em que eu era uma criança de nove anos. Que bom cozinheiro que ele era. Na panela de barro, ao lume de chão, fazia um excelente cozido de grãos, que era um autêntico manjar. Era um regalo! Depois de barriga cheia, era hora de dormir uma curta sesta. Seguidamente, debaixo do sol ardente de Julho e Agosto ia pelo caminho que saía do monte e atravessava a várzea, entre duas filas de oliveiras e raras azinheiras, até à estrada poeirenta que vai dar ao monte do Pigeiro. Atravessava-a, e passada uma centena de metros, estava novamente na ribeira. Regressava ao monte com um rabinho de sol, já com o rebanho de perus de papo cheio, para que ao sol-posto estivessem encerrados no galinheiro. A ribeira, pela sua frescura, era o local ideal para os perus. Era uma zona onde adoravam comer; gafanhotos, insectos e outros bicharocos. Mas a grama verde, era para eles um grande petisco. E eu, entretinha-me a ver as libelinhas pousadas na água ou seguia-lhes o voo até às tabúas. Outro dos meus passatempos era apreciar os cardumes de pequeninos peixes, tentar apanhar alguns para brincar numa poça feita ao lado do pego. Muitas vezes adormecia sobre a frescura da grama, à sombra de um freixo existente na margem da ribeira, a tal ponto que quando acordava os perus já tinham ido para outro local afastado daquele onde os tinha deixado. Para os localizar mais rapidamente subia a um freixo para a vista alcançar o mais longe possível e assim, ter outro ângulo de visão.
Recordo-me dum dia ter chegado ao monte, ao sol-posto, e depois de encerrar os perus no galinheiro, ao contá-los, o cozinheiro verificou faltar uma ave. No dia seguinte, os perus ficaram encerrados, enquanto fui ao monte da Vila Velha, ao Pigeiro Velho e Barranca de Cima procurar aos caseiros, se tinham visto por ali algum peru. Podia dar-se o caso de terem lá um peru a mais e ainda não terem reparado. O cozinheiro tinha-me ensinado o recado, pois era apenas uma criança de nove anos. Fiquei com a minha investigação completa, mas não provada, que tinham sido os ciganos que estiveram acampados nas redondezas, que apanharam o peru, e naturalmente, com ele feito um belo manjar.
Recordo-me do dia em que o lavrador, mais conhecido pelo velho Chico Garcia, numa das suas deslocações de charrete ao monte da Barranca de Baixo, acompanhado pelo escamel, o meu tio Manuel Luís, e que não devia ter mais de dezassete anos, me dizer:
- Então meu menino, gostas de ler? Então toma lá este livrinho de contos do “ João Ratão”. Na deslocação da semana seguinte, perguntou-me se tinha lido o livro e se tinha gostado.
- Disse-lhe que sim, que tinha gostado muito. Passou-me com a mão pela cabeça, então toma lá estes dois, que são muito bonitos e deu-me o “Gato das BotasSapatos” e o “Pedro das Malas-Artes”. Adorava aqueles livros. O velho Chico Garcia ofereceu-me ainda mais alguns livros até final das férias grandes, dos quais já não me recordo dos nomes. Depois regressei à escola e acabou-se a oferta de livros. Nunca mais vi o velho Chico Garcia, nem ele a mim. Os livros que ele me tinha dado, perdi-os de vista, mas ficou sempre qualquer coisa cá dentro de mim. Pelo menos, serviu para me ajudar a criar algum gosto pela leitura.
Recordo-me do livro da primeira e da quarta classe. Não me recordo dos livros da segunda e da terceira. Recordo-me da lição “olha, lá vai o Gonçalo, a caminho da escola”, de saber de cor as serras, os rios e seus afluentes, as linhas férreas e ramais.
Recordo-me de saber os nomes e cognomes dos reis e de saber a tabuada de cor. Tinha que saber tudo na ponta da língua, para não apanhar reguadas do professor.
Recordo-me da D. Aurora, que era assim um género de professora regente e esposa do guarda-rios. Morava na Rua Direita, e recordo-me do chão da casa de entrada ser de lajes de xisto. Recordo-me de me mandar fazer redacções e orientar-me nos trabalhos que a professora tinha marcado para fazer em casa, nomeadamente a tabuada, enquanto a minha mãe ia à monda, ou lavar a roupa num pego de água corrente, por cima das passadeiras, onde atravessávamos a ribeira do Lucefécit, na zona do Santuário de Nossa Senhora da Boa Nova
Recordo-me do dia em que fui à escola do Alandroal fazer exame da quarta classe. Recordo-me de ensinar os problemas a um companheiro de carteira, filho de abastado lavrador, a troco de uma borracha ou de um lápis, que eu não tinha, por não haver dinheiro para os comprar.
Recordo-me destas coisas tão simples, que à distância de mais de meio século, são simplesmente belas recordações.
Luís de Matos
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