domingo, 22 de março de 2009

Quadros do Rossio e da Ribeira do Lucefécit

Quando chegava o calor, bem no pico do Verão e das debulhas, era para mim um regalo ir dormir ao ar-livre, no Rossio, junto às almenaras de palha e cereal, pois era ali que os pequenos seareiros faziam as debulhas. O Rossio era um terreno com uma área de vários hectares, onde não havia qualquer construção. Nele estava implantado o campo de futebol. No restante espaço, todo o género de animal podia pastar à vontade. Em determinadas áreas, era até um terreno um pouco lamacento. Mas havia também espaços onde predominava o xisto, isto é, a eira estava feita por natureza. Eram esses os locais onde se faziam as eiras para a debulha e todos os anos se repetia o mesmo quadro. Cada pequeno agricultor já tinha a sua eira marcada. Esta situação durou até à década de setenta. Após 25 de Abril, altura em que a Junta de Freguesia e a Câmara urbanizaram todo o espaço para vivendas, se existia uma estrutura fixa, que era o campo de futebol, tiveram que arranjar uma alternativa e o Campo de futebol foi mudado para a zona das Alcaçarias, onde ainda hoje existe e com boas práticas para a modalidade.
Na época, um dos seareiros era o meu tio Joaquim Mira, que o meu pai alcunhou de “barbinhas”. Era um homem fantástico. Ele era de baixa estatura, mas rijo como ferro. Ao longo da vida teve vários acidentes. Ou de trabalho ou até quando se deslocava de motorizada. Como daquela vez que vinha de Montes Juntos, com um copito a mais, se despistou indo embater numa oliveira e que partiu uma perna. Quando o fui visitar ao Hospital de Évora, até parecia que não tinha sido nada com ele. Encarava o sofrimento e as dores como se fosse uma coisa normal. Era realmente um homem de rija têmpera. Nunca vi nada assim. Devido a todos esses acidentes que teve ao longo da sua vida, tinha as pernas e os braços ligados com porcas e parafusos, como é usual dizer-se. Mas isso não o impedia, de continuar a fazer trabalhos difíceis e sempre com um sorriso nos lábios.
Tinha pelo “Barbinhas”, o maior respeito e amizade. Aliás, a prova disso mesmo, era a forma como nos tratávamos. Quando era criança, deixava-me andar montado no trilho, enquanto ele, sob um sol abrasador calcorreava a eira ao lado da mula ou do burro a comandar as operações da debulha do cereal. Bom, rapaz, já chega. Vai pra casa qu’isto tá um sol que até quêma rolas.
Num desses dias, enquanto o cereal estava na eira à espera de ser debulhado, o José Major, de alcunha “ o charuto”, na brincadeira com o Inácio, filho do “Barbinhas” puxou fogo à cevada, que era o dito cereal Antes que o Barbinhas lhe pusesse as mãos em cima, o nosso amigo”charuto” fugiu e ficou o Inácio a tentar apagar o fogo. Apesar da sua boa vontade, para remediar o mal, não se livrou de levar uns bons sopapos do pai. Pudera! Não era caso para menos. É que tinha acabado de arder a seara, fruto de um ano de trabalho e que certamente, muito iria contribuir para a economia familiar, já de si bastante debilitada. Devido a este episódio, o pai passou a chamar-lhe de “ puxa fogo” e ainda hoje toda a gente só o conhece pela alcunha que o pai lhe pôs. E a coisa pegou tão bem, ficou tão enraizada, que o filho do Inácio, o Luís, também é só conhecido por “puxa fogo”. Por sua vez, o Afonso, filho do Luís, que tem agora cinco anos, também só já o tratam pelo neto ou filho do “puxa fogo”. E o que certo, é que o rapazinho responde à chamada, sempre com um sorriso de orelha a orelha.
Certo dia, por altura das férias do verão combinei com o meu primo João de Matos, a quem chamávamos “Salta Regos” para irmos ver os nossos avós, depois da devida autorização paternal, evidentemente. Mas não podíamos ir a pé, pois era longe de Terena. Ele pediu o burro emprestado ao pai. O Burro chamava-se Portugal. Lembro-me como se fosse hoje, apesar de já ter passado mais de meio século. Era preto e pequeno. Um burro inteiro, isto é, não tinha sido capado, daí que tivesse um grande par de tomates. A nós, causava-nos muita estranheza e então quando o burro via uma burra, era muito difícil segurá-lo. Montamo-nos no irrequieto jumento. O caminho era sinuoso e agreste. Saímos de Terena, passámos a ribeira do Lucefécit em direcção ao Monte de S. Miguel da Mota, também conhecido pelo monte Endovélico.
O “Salta Regos” era como se fosse o dono do animal , pois o pai tinha depositado nele toda a confiança. Por direito próprio era o condutor. Sentia-se muito importante. Para nós, gaiatos com oito ou nove anos, era uma grande aventura aquela viagem. Era como se fossemos ao fim do mundo. Andar de burro, pelo meio de estevas e piornos, mais altas que um homem, lá no alto, como se fosse uma grande serra, víamos o Monte de S. Miguel da Mota, onde outrora teria existido uma coisa muito estranha. Para nós, no nosso imaginário infantil, só víamos homens com espadas e escudos, lanças, setas e tesouros enterrados. E vai daí, tiro esta da cartola.
– Ó João! O burro é tão pequeno! Já viste que a gente quase que chega com os pés ao chão? Se eu caísse, não chorava. Palavras não eram ditas, o animal tropeçou e eu, zás com os costados no xisto. Escusado será dizer que choraminguei um bocado. Mas logo passou, tal era o contentamento que tínhamos de chegar ao pé dos nossos avós. E tínhamos que chegar com um ar de grandes homens, pois havíamos feito uma grande viagem sozinhos.
– Ó Luís, então que não choravas?
O Salta Regos, levou o resto do caminho sempre no gozo comigo. quando de tempos a tempos nos juntávamos, de uma maneira geral, sempre por qualquer fatalidade familiar, nos vinha à mente aquele pequeno acontecimento. Infelizmente, hoje já não podemos reviver esses agradáveis momentos, pois o “Salta Regos”deixou-nos a todos há pouco tempo. Foi aquela maldita doença sem cura que o levou. Foi a enterrar numa manhã fria, tanto chovia como fazia sol. Foi uma manhã muito triste que vivida em Montemor-o-Novo. O meu querido primo irmão. Amigo do coração, como se diz na nossa terra. Mas continuando.
Não havia pego na Ribeira do Lucefécit, desde onde outrora foi a horta do ti Zé Borrego até às Aguas Frias, um pouco mais abaixo da Boa Nova, onde actualmente chega a água do Alqueva que a gaiatada não conhecesse. E a pesca à lapa? Havia rapazes que eram uns mestres nessa arte de pescar. Eu confesso que nunca tive grande jeito. O que eu me recordo muito bem é que num dia, ao meter as mãos num buraco da margem, um pouco mais abaixo do poço do Morais, veio um rato pendurado pelos dedos. Foi cá um cagaço!
E os banhos?
Cortava-mos buinho e com ele fazíamos molhos que atávamos para servirem de bóia e assim, aprendíamos a nadar. De uma maneira geral, fazíamos um grupo; O João Dinis (janita), o Manel Zé Cebo, o Alberto, o Fragas, o Nau, o Zé Cachola, o Caturra, Salta Regos e outros que agora não me ocorre. Todos nós morávamos na parte velha da Vila, com excepção do meu primo Alberto que morava na Estrada das Hortinhas, onde é hoje o Bairro do Rossio. E os moinhos da Ribeira do Lucefécit? Tudo isso desapareceu com a construção da Barragem. .
Na Horta do Paiva, era assim que era conhecida, ainda hoje lá existe um forno de cozer telha, ladrilho e baldosas. Todos os anos, pelo verão ali se instalava o Mestre Zé Bilro, com a família, vinda de Borba. O meu pai, era o único homem de Terena que trabalhava com o Mestre Zé e os dois filhos. Bons amigos e boa gente. No final do verão terminava a faina e regressavam a Borba. Todos os anos se repetia a mesma cena. O Mestre Zé, só vinha a Terena por altura da Festa da Boa Nova, e lá ia ele fazer sempre uma visita ao meu pai e logo nesse dia tratavam de combinar o trabalho do próximo verão. Isto durou vários anos, até que a vida tomou outro rumo. O meu pai foi trabalhar para outro lado e o Mestre Zé também nunca mais voltou ao telheiro. E o telheiro também nunca mais trabalhou. Não há quem lhe dê vida, apesar daqueles materiais terem muita procura.
No final do verão, os artesãos da telha e ladrilho, juntamente com o pessoal que trabalhava na Horta e na vacaria, poderiam ser oito ou dez homens ao todo, era hábito fazerem uma pescaria na Ribeira do Lucefécit. Mas o filho do Feitor, o António e eu próprio também participávamos no almoço. Era uma festa. Nessa noite não dormíamos a pensar na pescaria. Não nos interessava o almoço, mas antes toda aquela azáfama Partíamos de Terena com uma carroça carregada de todos os utensílios e comestíveis necessários. Só faltava o principal que era o peixe. Não havia problema. Para onde íamos, era o que lá não faltava. Chegados ao local, os homens descarregavam a carroça. Logo ali se combinavam e se fazia a distribuição das tarefas que cada homem ia fazer. Uns, estendiam o tresmalho para apanhar o peixe e também eu, com os meus oito ou nove anos, já queria ajudar na faina. Passadas algumas horas, poucas, porque a fome apertava, alguns dos homens procediam ao levantamento das redes para recolha do peixe, enquanto outros acendiam o lume e colocavam uma panela com água a aquecer. Outros, iam tratando dos temperos e pôr a mesa. Quando se recolhia a rede, os peixes eram colocados numa caixa de madeira e tiravam-se as escamas. Com o peixe macho e os achigãs fazia-se a caldeta. E que maravilhosas que eram!. Aquele cheirinho a poejo e a hortelã da ribeira. Os peixes mais pequenos eram fritos, depois de temperados com sal, alho e hortelã da ribeira. Punha-se a mesa à sombra de uma azinheira ou encostada à parede do moinho, o mais perto possível da água. E vá de dar ao dente. Tem cuidado rapaz, para não engolires nenhuma espinha. Olha que é perigoso, diziam-me. Mas o meu pai tinha um cuidado redobrado com o filho. Era um petisco de fazer crescer água na boca. Tudo era bom. Recordo-me que até os homens eram bons. Havia sinceridade nas palavras e os actos por eles praticados eram sinceros e correctos. Os homens acompanhavam a refeição com vinho branco ou tinto e eu, com um pirolito do Chico Zé, de Vila Viçosa, (que na época abastecia todas as tabernas e mercearias das redondezas) ou com água do cântaro de barro ou do barril, que também era muito boa e fresca.

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