domingo, 14 de outubro de 2007

Sinfonia Rústica

Alandroal
Josué da Silva Batista (55 anos)
I
As trindades acabam de cair.
Desce a noite. Há silêncio no montado.
Os pastores dormem já a bom dormir.
Nas “malhadas” também sossega o gado ...
II
O “maltês” que anda à falca faz se ouvir
E o feitor que que ouve os cães está preparado
Não se vá galináceo ali sumir,
P’ra render uns tostões no povoado ...
III
E na loira planície dos trigais,
Onde a luta co’a terra não fenece,
Os “ajudas”, “ganhões” e “maiorais”.
IV
‘Inda a luz da manhã mal aparece,
Levantam-se a pensar nos animais
Enquanto a água para a “açorda” aquece ...

“ZÉ CIGANO” A um Feliz Mendigo ...

Alandroal
Josué da Silva Batista (55 anos)-Ano 1977

Barba cerrada e grisalha,
Um ar sempre prazenteiro,
Percorria o povoado
Gritando nun alto prado:
“Compram-se peles de coelho!”
II
Nunca fez mal a ninguém.
P’ra tudo tinha chalaça.
Mas, perante alguém que sofria
Transformava-lhe o rosto
E a sua voz galhofeira
Mostrava bem que sentia,
Na alma-pura,talvez!-
A dor da melancolia ...
III
Era o velho “Zé Cigano”
Que o rapazio adorava,
Porque lhe contava histórias,
No verão às esquinas das ruas,
Quando a luz em céu estrelado
Melancólica passava ...
IV
Ouvi-lo contar a história
De um velhinho que sofrera
P’ra não maltratar um aio
Que a rico senhor servia,
Era a coisinha mais bela
Que a linguagem singela
Do pobre velho sabia ...
V
Descrevia em pormenor
Tudo quanto lhe ocorria
E, na representação
Da “história” que ia contando,
O pobre velho chorava,
Ria e por fim cantava
Radiante de alegria ...
VI
Mas um dia o “Zé Cigano”
Deixou de ouvir-se na aldeia
E toda a gente o estranhava,
Uns a outros perguntando
Que seria feito dele
Que seria feito dele
Que a sua voz não soava!
VII
Tinha sido vitimado
Por doença mui cruel
E não podia mover-se
Nem gritar por toda a terra
Como antes sempre fizera.
VIII
O rapazio lá passava
Por casa do “Zé Cigano”,
Se é que casa se chamava
O casebre onde vivia
E todos os confortavam
E lhe davam que comer,
Mas ele já não podia
Mais que num gesto agradecer
- Estava prestes a agonia ...
IX
Cerrou os olhos, finou-se
O pobre do “Zé Cigano”
E o lugar ficou mais pobre
Porque um pobre lhe morria,
Pois já não tinha ninguém
Que fosse como ele foi,
Criado sem pai nem mãe,
Sem família, sem ninguém,
E tão ligado às famílias
Que na pobre terra havia.
X
Sempre alegre e prazenteiro,
Na modéstia do seu ser,
Tudo nele era uma graça,
Todo ele era alegria ...
XI
Foi como um anjo do céu
Transformado num mendigo
Que ali viera ensinar
Na forma mais eloquente,
Mais modesta e sem igual,
Que a terra nos pode dar,
Como o amor é singular!
XII
No dia do funeral
Toda a aldeia chorou.
Lá foram pobres e ricos
Acompanhar o mendigo
Que também sobe ensinar
O que Jesus ensinou ...
XIII
Foi o amor a sua arte
Que não vitima ninguém
Mas que é forte e é terrível
P’ra aqueles que dela abusam,
Como se fosse possível
Do ódio tirar partido,
XIV
E, desde que o “Zé Cigano”
Pr’a esta vida morreu
A terra ficou mais pobre
Mas ficou mais rico o céu!

O Almoço da Ceifa

Decorria a época da ceifa. Um pequeno proprietário de Terena, de seu nome Joaquim Dias ,homem de baixa estatura, não fora os muitos anos de trabalho agrícola, e não teria o esqueleto tão curvado, andava ceifando a seara numa sua tapada, defronte ao cemitério, onde hoje existe uma bela casa de traço tipicamente alentejano, com piscina, mandada construir por um emigrante natural de uma localidade próxima.
Chegada a hora do almoço, o proprietário, a esposa e um trabalhador concertado para o trabalho da ceifa, sentaram-se à volta do tarro de cortiça para comerem o cozido de grãos que na noite anterior a esposa do pequeno proprietário havia feito.
A refeição decorria num ambiente de boa harmonia mas, o proprietário estaria mais interessado em que o trabalhador comesse menos e trabalhasse mais.
Quando comeram as sopas e se preparavam para comer o toucinho e a morcela, o proprietário, olhando para os dois companheiros da faina, exclamou;
Bem, nós por aqui ficaremos, eu e a minha mulher e quem mais vergonha tiver.
O trabalhador deixou passar a gracinha, mas disse para consigo.
– O patrão está a referir-se a mim! Nã vejo aqui outr’ alma a nã ser eu!
No dia seguinte à hora do almoço, o proprietário repetiu a mesma chamada de atenção, o que levou o trabalhador a pensar na forma como lhe havia de responder sem o ofender.
– Outra vez? Já t’avio! Pois ê como nã tenho, nem uso dela, comi o toucinho tamém vô comêri a morcela.
O proprietário olhou para a mulher, ficou um pouco envergonhado e desde esse dia, nunca mais “chorou” a comida do trabalhador.
Nota: Esta estória foi-me contada em criança pelo meu pai, nas longas noites de inverno, à chaminé.
Luis de Matos