Uma Família de Lontras (a dar à estampa)
Estamos em plena Primavera. Muito
próximo de Terena, a ribeira de Lucefécit, também conhecida por Boa Nova, de
águas muito límpidas e cristalinas, corre para o rio Guadiana e este, por sua
vez, só para no Grande Lago de Alqueva. Na planície, abundam as azinheiras,
sobreiros e oliveiras, que se estendem quase até à margem da ribeira de
Lucefécit. Aqui e ali existem os freixos, choupos, plátanos, estevas, piornos,
rosmaninhos e alandros com flores brancas e vermelhas.
A Primavera
é, realmente, a estação das flores de
muitas cores. Abundam os malmequeres, brancos e amarelos. E, as papoilas, com a
sua cor avermelhada, misturam-se com o manto
ondulado e o doirado das espigas de trigo. Os silvados também existem em
grande número e as suas amoras servem de alimentação aos rouxinóis, melros e
outras espécies de passarada. Há sempre a tentação de colher as saborosas
amoras para comer ou para as preparar em casa, para fazer licor e compotas.
Em muitos pegos da ribeira de Lucefécit e, por vezes
junto à margem, não faltam as tabúas, junça, buínho e as frágeis e elegantes
libelinhas, pousando no espelho de água e nas tabúas. Podemos ver borboletas
das mais variadas cores voando rente à água, ou fazendo grandes acrobacias por
entre as tabúas e o juncal.
A
ribeira de Lucefécit tem uma beleza muito especial. Ao longo do seu percurso,
que é muito bonito, podem ver-se muitas variedades de flora. As muitas curvas
apertadas da ribeira fazem com que as águas, quase abracem a outra margem.
A acrescentar a esta paisagem idílica, existem
passarinhos das mais variadas cores e espécies que, logo pela manhã, pousados
na copa das árvores, dão início a um lindo cantar. É certo que é menos musical,
mas também não deixa de ser artístico, parecendo até um concerto executado por
uma banda de música que, associado ao silêncio dos campos, a torna num local
paradisíaco.
Por vezes, aqui e ali, a ribeira é rodeada por altas
escarpas de xisto. Com o passar de muitos e muitos anos, devido aos fortes
ventos e chuvas, muitas das lajes de xisto soltam-se e espalham-se pelas
íngremes encostas. Outras vezes, caem devido à ação do homem, quer seja através
da agricultura, ou do seu arranque propositado para a construção de habitações
e muros, tornando estas construções muito apreciadas, não só pelos habitantes
locais, mas também por outras regiões do país. Muitas são as lajes espalhadas
ao longo das margens da ribeira de Lucefécit, camufladas com a bravia vegetação
que, muitas vezes, servem de toca para as lontras e seus filhotes.
Na ribeira de Lucefécit, existem algumas lontras mas, é
muito difícil vê-las porque se escondem no seio do seu habitat.
Logo pela manhã, mal o sol nasce, a mãe lontra, de nome
Juca, começa o dia, com as suas mãozinhas ligadas por uma membrana, acariciando
os seus três filhotes, a que deu os nomes de Miguel, Linda e Flor. A mãe Juca
vigiava os três filhotes que estavam deitados sobre a frescura das ervas a
brincar e a descansar de barriga para o ar. E assim passam horas e horas,
deleitando-se com os mimos da mãe Juca.
Um dia, as três jovens lontras, depois de autorizadas
pela mãe Juca, resolvem iniciar uma viagem, ribeira abaixo, à descoberta de
outros locais, mas sempre com a promessa de, antes do anoitecer, regressarem à
toca, para junto da mãe lontra. Esta já os tinha ensinado a defenderem-se dos
homens e de outros predadores, que andam sempre por ali perto, escondidos nas
margens, sorrateiramente, à procura de alguma presa. As três jovens lontras
nadaram, nadaram, até se cansarem. Como já estavam muito fatigadas, decidiram
fazer uma pequena paragem na margem da ribeira. Eis que, de repente, foram
alertadas para qualquer coisa de anormal que lhes perturbou o descanso.
-
Fujam já para dentro de água! - disse o
Miguel. - Vamos para aquele pego mais fundo, para nos podermos esconder mais
facilmente.
-
Que bicho era aquele tão feio, esquisito e
grande? - perguntou Linda, ainda meio
assustada.
-
Era um cão. Que horror! Que cheiro pestilento,-
respondeu o Miguel com toda a autoridade de quem conhece muito bem os outros
animais. Deve andar perdido, ou foi algum caçador que o abandonou, vendo que
não era bom para caçar.
-
Mas nós é que não temos culpa... Não queremos
ser mordidos e muito menos servir-lhe de refeição. Não é nada parecido com a
gente! Talvez não nos fizesse mal, mas nunca fiando, podia ter fome e
atacar-nos. Foi o melhor que fizemos. Não foi Miguel? - disse a Flor.
-
Sim. Safa! Que susto. Livrámo-nos de boa. Foi
por pouco... Agora fiquemos aqui escondidos, mas temos de estar sempre alerta -
disse o Miguel.
Claro, para isso é que servem os nossos
ouvidos e pelos que temos junto à boca e ao nariz, que são os nossos órgãos
sensoriais.
Finalmente, ao fim de algum tempo, o perigo passou. O
cão, aquele animal pestilento, tinha
resolvido partir.
- Prestem
atenção: o que é que acham se fôssemos colher flores para oferecer à nossa mãe?
Mas não nos podemos afastar muito uns dos outros, e muito menos da margem,
porque se aparecer algum perigo, corremos a esconder-nos na água. Só aí é que
estamos a salvo, - disse o Miguel.
- Boa
ideia! Então vamos. - disse a Linda.-Olha, há ali malmequeres, lírios e
papoilas. Que bonito ramo que vamos fazer! E assim, as três jovens lontras
deitaram mãos à obra.
Agora
é a vez de Flor, dar ordens ao Miguel. É certo que é mais nova, mas nessa
questão de flores, ela é que sabe:
-
Colhe ali aquela papoila e aqueles malmequeres, enquanto eu vou colher uns
lírios e um ou dois pés de rosmaninho, que cheiram muito bem. Vais ver como
vamos fazer um bonito ramo. E a nossa mãe vai ficar tão contente! - disse a
Flor.
- Pronto,
aqui tens. Agora, quero ver a tua habilidade. Uma vez que tu é que sabes... -
desabafou o Miguel, um pouco amuado, pois não tinha achado graça nenhuma ao facto
de a Flor lhe dizer para colher só malmequeres e papoilas, quando ele queria
colher flores de todas as espécies e cores.
Mas,
como bons irmãos, depressa passou o pequeno amuo. Continuaram numa grande agitação e orgulhosos
no trabalho de decoração da toca.
-
Quando a mãe Juca chegar, vai ter uma boa surpresa, - disse o Miguel.
- Olha
Flor, estes brincos são para ti. Também te fiz um colar de malmequeres. E para
também fiz um colar para a Linda. Não tinha linha para enfiar os malmequeres,
mas colhi um pé de junça e resultou. Tomem-nos, pendurem-nos ao pescoço. Mas,
pensando melhor, dai cá os colares que eu ajudo a colocá-los. - disse o Miguel.
- Que
bonito, mano! - muito obrigada, disseram
Linda e Flor, já um pouco comovidas, enquanto o Miguel lhes dava a face para
receber dois beijinhos delas ,em sinal de agradecimento.
Ao final da tarde, a mãe Juca chegou a casa. Quer
dizer... à toca, que estava muito bem decorada com as flores que os três tinham
colhido. A mãe Lontra foi apanhada de surpresa e agradeceu aos filhotes, por
terem enfeitado a toca com flores tão bonitas. Depois mostrou-lhes o enorme
peixe que tinha apanhado para o jantar. A mãe Juca cozinhou o enorme peixe e,
enquanto comiam, cheios de entusiasmo, contavam à mãe as aventuras do dia. A
mãe ouvia-os com muita atenção e com todo o seu amor, próprio de mãe,
disse-lhes:
-
Sim, eu sei. Acompanhei-os sempre de perto
para ver como é que vocês ultrapassavam as dificuldades que existem no nosso
habitat. Hoje passaram por uma experiência completamente nova que se veio a
confirmar numa boa prova de sobrevivência. Se quiserem, amanhã deixo-vos ir
visitar o avô.
- Boa, boa! -
disseram os três ao mesmo tempo.
- Por hoje já chega, disse-lhes a mãe Juca.
Agora vão deitar–se, porque amanhã têm um grande dia pela frente.
Nessa noite, Miguel, Linda e Flor, não dormiram o
habitual sono profundo das noites anteriores. Mal rompeu o dia, levantaram-se
de imediato para um passeio que eles consideravam muito especial, pois desta
vez, tinham um local certo a visitar. Era a casa do avô, e isso excitava-os.
- Mãe,
sabes onde fica situada a casa do avô? - perguntaram as três jovens lontras ao
mesmo tempo, tal era o nervoso miudinho que se tinha apoderado delas.
- Sim,
sei.- respondeu a mãe. Fui lá criada, não havia de saber? Próximo da casa,
existe um monte muito grande e muito importante, onde outrora existiram povos
muito sábios, que se orientavam pelas estrelas e pelo sol. Sabiam ver quando
chovia, nevava, fazia frio ou calor. Respeitavam as plantas e as árvores, os animais
e as águas da ribeira. Todos os homens eram amigos uns dos outros, e as
crianças brincavam e corriam alegremente por entre flores, de todas as cores
que possas imaginar. As cores eram tantas que até parecia o arco íris. Na
margem da ribeira, o avô tem uma pequena horta e um moinho para fazer farinha.
Tem também um forno para cozer o pão com a farinha que ele próprio mói no
moinho. O pão feito pelo teu avô é muito saboroso, e quando sai do forno, nem vos digo! É cá um
aroma! E como sabes, o pão é muito bom para a nossa alimentação. Bom… vão
embora, porque se começa a fazer tarde,- disse a mãe Juca.
As três jovens lontras, deram então início à viagem, só
que desta vez, era feita ribeira acima, para os lados do tal monte muito
grande. Tinham de vencer algumas correntes mais fortes da água da ribeira, pois
nadavam contra a corrente. Nadaram, nadaram, até se cansarem. E quando na
margem da ribeira pararam para descansar, já um pequeno grupo de cinco jovens
lontras tinha feito o mesmo. Com cautela, aproximaram-se e, prontamente, o
Miguel perguntou-lhes como se chamavam, de onde vinham, para onde iam e porque
é que estavam ali? Queria saber tudo sobre eles, e conforme as respostas, logo
veria se podia confiar neles e serem amigos.
As respostas não tardaram. Logo o Duarte, com toda a sua
sabedoria e entusiasmo, fez as apresentações: esta aqui é a Inês, esta é a
Leonor e estes são o Tomás e o Afonso. Estes dois últimos, são os mais novos.
Ainda têm alguma dificuldade em acompanhar o nosso ritmo de nado. Por isso tivemos
de fazer aqui uma pausa. Não temos um destino certo, nem horário a cumprir,
simplesmente viemos dar um passeio, calmamente, para alertar sobre os perigos e
preparar estes dois mais novos para a vida, bem como a Leonor, o Tomás e o
Afonso, pois têm ainda muito para aprender: têm de conhecer outras águas e
paisagens, uma vez que só conhecem os pequenos ribeiros onde vivem com os pais.
E então? Achas que respondi às tuas perguntas? Merecemos a tua confiança para
podermos ser amigos?- perguntou o Duarte.
-
Bom... Não sei...- respondeu o Miguel com
alguma hesitação.
-
Está bem. Se não tens confiança...- respondeu
o Duarte e preparando-se para abandonar o diálogo, revelando-se nitidamente desinteressado.
-
Bom, está bem! - respondeu finalmente o
Miguel.
-
Então, se nos consideras amigos, daqui em
diante, eu gostava de ser o líder do grupo, porque como vês, nós somos cinco e
vocês são apenas três. Eu tenho mais experiência e conheço melhor estas águas
do que tu. Sei onde pode estar o perigo à nossa espreita e viemos de mais
longe, argumentou o Duarte, justificando a sua proposta. - Estás de acordo?
-
Sim, não me importo, - respondeu o Miguel.
-
Hei! - e nós as duas, não temos direito a dar a nossa opinião? -
perguntaram a Linda e a Flor.
-
Claro que têm, mas nestas circunstâncias não
temos alternativa. Além disso, qual é o mal de serem eles a indicarem-nos o
caminho? - perguntou o Miguel. - Nós só queremos ir a casa do nosso avô,
queremos conhecer a horta e o moinho dele e que nos ensine a trabalhar com o
moinho. Queremos aprender a transformar os grãos de milho e os bagos de trigo
em farinha, para fazermos pão. Queremos aprender a deitar sementes à terra para
nascerem as plantas e plantar couves, alfaces, cenouras...Queremos aprender
tudo quanto o nosso avô nos possa ensinar, porque a nossa mãe disse-nos que ele
sabe muitas coisas. E, assim, pode ser que um dia eu e os meus irmãos possamos
ensinar os nossos filhos e netos. Não nos havemos de esquecer do que ele nos
pode ensinar. Não concordas? Como vamos adorar! - Eh, eh, eh…- riu o Miguel. E,
virando-se para o Duarte, perguntou-lhe: - Já agora, se não te importas,
deixa-me fazer-te uma pergunta: Tu sabes, onde é o moinho do meu avô, já que
conheces tudo? Ensinas-nos o caminho? A nossa mãe, disse-nos onde era, mas mais
vale perguntarmos o caminho para termos a certeza de que não nos perdemos -
disse o Miguel.
- Claro
que sei! - respondeu o Duarte. - Não te disse já, que conheço estas águas como
ninguém? Fica descansado! - disse o Duarte, tranquilizando-o. - E a ribeira é
muito grande! Tem muitos afluentes, mas isso para mim não tem qualquer
problema: é só seguirmos ribeira acima, e depois, onde encontrarmos uma grande
enseada e um açude feito com muitas
pedras, que os homens há muitos anos construíram para reter a água para fazer
trabalhar o moinho, é logo ali, na margem direita. Não custa nada. Vais ver que
não vai ser difícil lá chegarmos porque eu conheço muito bem este local. Podem
confiar, meus amigos.
E assim, depois de estabelecida a amizade, partiram
todos, alegres e sorridentes, de barbatanas dadas uns aos outros e, abanando as
caudas, calmamente, seguiram ribeira acima, em direção à horta e ao moinho do
avô, que os três irmãos, tanto desejavam conhecer.
Évora,
17 de Agosto de 2008 Luís de
Matos
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