A
CASA QUE SABIA FALAR
Há muitos, muitos anos, na aldeia de
Lavre, moravam pessoas muito pobres. A maior parte das casas da aldeia, também
não tinham grandes condições para as pessoas habitarem. Mas havia uma das casas
que, realçava de todas as outras pela sua beleza e grandeza. Pertencia a uma
família muito rica da aldeia e que morava em Lisboa. Os donos dessa casa, de
vez em quando, vinham visitá-la. Passavam ali uns dias a descansar, ou para
tratar de assuntos relacionados com as suas propriedades e depois voltavam
novamente a Lisboa.
Um dia, numa dessas vindas à aldeia, depois
de cumprimentar a família, a casa perguntou:
-
Então
por onde têm andado, que há tanto tempo não os via?
- Ora, então não sabes que estamos a
viver em Lisboa? E estamos muito bem, respondeu o homem.
Depois acrescentou: Diz-me
cá, ó casa. Então agora tens cá a residir umas pessoas? Quem é que te deu
autorização para receberes cá toda esta gente? Nunca me perguntastes nada, nem
tão pouco à minha irmã, se essas pessoas podiam ou não vir para cá morar!
- É verdade. Tens razão. Eu também não as
pude impedir. São pessoas que vieram de outras terras próximas para trabalharem
na agricultura. Um dia apareceram aqui a dizer que não tinham casa para morar
com os filhos e uma vez que eu não tinha cá ninguém, dei-lhe guarida. E olha, a
partir daí foram ficando, ficando e nunca mais de cá saíram. O que é que eu
podia fazer? Nada, absolutamente nada. Assim, pelo menos tenho companhia e
sempre vão cuidando de mim, uma vez que tu e a tua irmã, quase nunca cá estão.
Estas pessoas sempre
me vão dando uma limpeza e de vez em quando, até fazem umas pequenas obras que
preciso. É certo, que também é para melhor conforto delas. Mas olha, se queres
que te diga, não me parece nada mal. Antes pelo contrário, até acho muito bem.
- Sim, a nós também. Mas podias, ao
menos ter-nos dito alguma coisa, que a gente certamente não se importava,
respondeu o dono da casa.
-
Como
é que querias que te dissesse, se isto foi tudo tão de repente?
E,
para mais com as dificuldades que há de comunicações… Não te esqueças que
estamos numa aldeia do Alentejo. Não estamos em Lisboa!
- Mas ao menos as pessoas cuidam de ti!
É isso não é? Tratam-te bem? Fico contente que assim seja.
- Sim, muito bem, muito bem. Gostam
muito de mim. Tenho companhia durante todo o dia e as crianças, quando não
estão na escola dão-me uma grande alegria. Andam sempre a correr por todo o
lado e, devido às suas brincadeiras farto-me de rir com elas. Moram todos no
primeiro andar. São quatro casais e nove crianças. Dois casais têm três filhos
cada um. Um outro casal tem dois filhos e o outro tem só um filho. Este último
é o casal mais novo. Todas as crianças andam na escola. É só subirem a rua, e
pronto, passam lá o dia todo. Almoçam no refeitório da escola e à tarde vêm
para casa. Fazem os trabalhos escolares e depois vão brincar para o pátio.
- Estou contente por estares feliz,
disse o dono da casa.
- Sim, sim, muito. Queres saber mais? Quando
chega o Natal, vivo uma alegria como não vivia há muitos anos. As crianças que
aqui moram convidam todas as crianças da aldeia. É certo que nem todas vêm. Mas
a maioria vem. Fazem pinturas, desenhos e no final, com a ajuda dos
professores, montam uma exposição que é o encanto da maior parte das pessoas da aldeia.
As crianças
divertem-se muito e ainda levam uns chocolates para casa para pôr no sapatinho
na noite do Menino Jesus. Faz-me recuar no tempo. Há muitos anos atrás, também
metias uns chocolates nos sapatinhos dos teus filhos. E eles, logo de
manhãzinha, muito antes do sol nascer corriam para a chaminé a ver o que o
Menino Jesus lhes tinha deixado. Lembras-te?
- Se me lembro…
- Outra coisa te quero dizer. Como
sabes, no meio do pátio está o poço que é muito fundo e tem sempre muita água. Um
dia, os pais das crianças juntaram-se e pediram-me autorização para colocar uma
chapa de ferro para o tapar, porque é um perigo para as crianças. Podem cair lá
para dentro e morrer afogadas. Eu dei autorização para que o tapassem, porque,
mesmo eu, até fico mais descansada. Transmito mais segurança.
Estavam
os dois com esta conversa, quando começaram a ouvir gritar:
- Socorro, socorro, gritavam algumas
crianças! Acudam, gritavam outras.
- O que é que aconteceu? Perguntava uma
das mães das crianças, ao mesmo tempo que tentava acalmar as outras mães.
- Foi o João que destapou o poço. Com o
esforço, desequilibrou-se e caiu lá para dentro. Estava-se mesmo a ver que só
poderia acontecer ao João. É muito irrequieto, desabafou o Rui, que era o mais
velho. Bom, mas agora o que interessa é socorrer o João.
- Ai meu querido filho! Quem me acode!
E a mãe continuava numa grande aflição a pedir auxílio.
- Aguenta-te filho, gritava a mãe cá de
cima toda debruçada sobre o gargalo do poço. Continua a boiar para te
aguentares. Ou segura-te a uma pedra da parede. Não desanimes, que já te retiramos
daí! A mãe tentava dar ânimo ao João, que já começava a dar mostras de cansaço.
- Entretanto, já o pai de uma outra criança,
tinha corrido a buscar uma corda bem grande. Não era muito grossa, mas era
resistente. Prendeu-a a um ferro que estava preso no gargalo do poço e fazia um
arco, onde noutros tempos existiu uma corda com um caldeiro de chapa de zinco
que servia para tirar água para dar de beber aos animais e para regar as flores
dos canteiros e dos vasos que estavam encostados às paredes do pátio.
O Homem atou a corda à
cintura e desceu para agarrar o João que, entretanto já se tinha segurado a uma
pedra mais saliente da parede do poço, tentando aguentar-se na água para não ir
ao fundo. Cá em cima, todos se debruçavam no gargalo do poço porque queriam
assistir ao salvamento do João.
Felizmente que tudo
correu bem e não passou de um enorme susto, mas podia ter resultado em
tragédia.
Daí
em diante, na tampa de ferro que estava a tapar o poço, os pais instalaram uma
fechadura e guardaram a chave num sítio que só eles sabiam. E assim, evitaram
mais acidentes no futuro.
- Como sabes, estamos na Primavera e as
crianças gostam muito de brincar no pátio. Com os vasos de flores colocados à
volta do poço, os canteiros que existem junto às paredes do pátio e a mimosa
que está lá ao fundo que dá flores amarelas e perfumadas, dão-me um grande colorido
e uma grande alegria.
Lembras-te
quando o nosso Simão dava ali água aos cavalos antes de partir para as
touradas?
Era
tudo tão bonito!
- Pois
era!
- Eram
outros tempos. É nisso que estás a pensar e te deixa saudade, não é? Pois, eu
bem te conheço, João!
- Bem, isso é tudo verdade, respondeu o
homem um pouco emocionado. Mas estávamos a falar das pessoas. Eu também gosto
de as ver. Mas diz-me cá, o que fazem no rés do chão todas estas pessoas da
aldeia? Que é um entrar e sair, a todo o instante? Coisa que nunca vi em lado
nenhum?
-
Bom,
isso é outra história. Queres saber?
- Claro que quero. Estou aqui para
isso. Para saber tudo o que se está aqui a passar. Que eu saiba, por enquanto,
ainda sou o dono disto tudo.
- É verdade, tens razão. Então, vou contar-te:
Um dia, umas pessoas vieram cá ter comigo e disseram-me que queriam vender
coisas mais baratas para a população, mas não tinham local onde o pudessem
fazer. Disseram-me que eram produtos para a alimentação das pessoas e outras
coisas que fazem falta em qualquer casa. Então eu pensei: Se era uma atividade
tão nobre e como tinha aqui este espaço sem qualquer utilidade, que era o ideal
para elas, resolvi ceder-lho. As pessoas disseram-me que muito brevemente, iam
começar a vender aqui as tais coisas para governo da vida das pessoas da
aldeia.
E foi assim que tudo aconteceu. O que é que eu
podia fazer? Nada, absolutamente nada.
Sabes
que mais? Não me posso queixar. Um dia destes, duas ou três pessoas vieram ter comigo, onde vinha um tal
Vinagre. Lembras-te?
- Sim, lembro-me muito bem. Não é um
que andou a trabalhar lá por Lisboa?
-
Sim,
é esse mesmo.
- E depois?
- Vieram pedir-me autorização para fazerem uma
padaria, que incluía um forno para cozer pão para as pessoas de toda a aldeia,
porque como sabes, não há cá ninguém que faça pão. E tu sabes bem que, quando
cá estás, tens que o ir comprar à cidade. É ou não verdade?
- Sim é verdade, respondeu o dono da
casa.
- Então, tive de dizer que sim.
Disse-lhes que podiam construir o forno do pão. Não vejo motivo por que havia
de dizer que não, se até me estão a valorizar. Por que se tu cá estivesses,
também fazias o mesmo. Eu conheço-te bem, João. Sei que tens bom coração. Há ainda
outra coisa que gostava que soubesses. E antes que o saibas por outras bocas,
faço questão em ser eu a dizer-te.
-
Então
diz lá.
- Desde há dias que está cá também a dormir,
ali no quarto do primeiro andar, este mesmo aqui à esquina, um homem que veio
de Lisboa.
Sim, não faças essa cara de espanto
mas, segundo ouvi dizer, está cá por pouco tempo. Se calhar tu até o conheces.
Como estás lá para Lisboa… É alto, magro e bem parecido. Tem um bocadinho falta
de cabelo e usa óculos grossos. Ouvi dizer que se chama Saramago.
- Dizes cada coisa… Como é que queres
que conheça? Em Lisboa existem muitos homens com esses sinais. E até há pessoas
que são muito parecidas com outras. Já ouvi falar desse nome Saramago, mas
nunca vi tal pessoa, disse o João.
- Bom, isso agora pouco interessa. Até
achei graça ao nome do homem, por me fazer lembrar as ervas que têm o mesmo
nome e que existem aí no campo.
Dizem que é uma pessoa muito importante. Que
escreve, ou não sei quê… que faz livros...essas coisas que eu não percebo lá
muito bem. Dizem que veio para cá para escrever um livro baseado numa história
da vida do João Serra que foi escrita pelo próprio e está tudo num caderno. Se
queres que te diga, eu também acho que deve ser uma pessoa muito importante. Se
faz livros, é porque lá tem o seu valor, porque isso não é para qualquer um.
Não te parece, João?
- Sim, e depois? Mas já agora deixa-me
dizer-te, para no caso de não saberes. A essas pessoas que escrevem livros,
chamam-se escritores.
- Sim eu sei. Mas queres saber mais? Até
esse homem, um dia, sabendo das dificuldades das pessoas que estão cá a morar
tinham para construir o forno, de boa vontade emprestou dinheiro. E olha que
não foi pouco, porque eu bem vi o valor, com recibo passado, e tudo ali escrito
como deve ser. Está lá escrito no recibo que é para ajudar na compra dos
materiais destinados à construção do forno. E aquilo que eu vejo com os meus
olhos, que como sabes são as minhas janelas e os ouvidos as minhas portas,
ninguém me pode desmentir.
E então,
foi assim que aconteceu. As pessoas construíram o forno e agora toda a gente
está mais feliz. Já podem comer pão fresco todos os dias, sem ser necessário ir
comprá-lo à cidade. Essa do pão fresco, se queres que te diga, acho que é um
contrassenso. Então, se o pão sai quentinho do forno, como é que as pessoas
dizem que é pão fresco? É esquisito não é? Mas que tem piada, lá isso tem.
-
Isso
é verdade, disse o João.
- Então não é bom, que tudo isto
tivesse acontecido cá na aldeia? Foi tudo feito para bem das pessoas! De
qualquer maneira, eu estava para aqui abandonada e quase sempre sozinha!
Ninguém me ligava, e agora sinto que sou útil às pessoas. Elas gostam muito de
mim e sou respeitada.
Évora, Novembro/2010 Luís de Matos