Em plena planície alentejana, situa-se uma pequena aldeia, muito bonita, toda caiada de branco, com a sua igreja de arquitectura ímpar lá no alto da colina, o imponente castelo muito bem conservado.
Estamos em plena Primavera. Muito próximo da aldeia, corre um pequeno rio de águas muito límpidas e cristalinas. Na planície abundam as azinheiras e os sobreiros, que se estendem quase até à margem do pequeno rio. Aqui e ali existem os freixos, choupos, plátanos, estevas, piornos, rosmaninhos e alandros com flores brancas e vermelhas.
- O que é o piorno e a esteva? Perguntou o João ao tio, pois nunca tinha ouvido falar destas coisas.
- Olha, o piorno é um arbusto que dá flores amarelas. É parecido com a giesta que existe nas bermas de algumas estradas. Pode medir até 3 metros de altura. Desenvolve-se muito facilmente nos terrenos incultos. Nos meios rurais, os ramos são aproveitados para a confecção de vassouras. Há muitos anos, também era usado para aquecimento dos fornos de pão.
Quanto à esteva, é um arbusto vigoroso, nasce nas fendas do xisto ou em terrenos incultos. Tal como o piorno, também era usado para aquecer os fornos de pão. Deita uma flor branca, marcada por pequenas manchas vermelhas em forma de coração. As folhas têm uma goma que pode ser aproveitada na indústria de perfumes. Dás-te por satisfeito com esta explicação?
- Sim, mas tenho outra pergunta a fazer-te. Quero que me expliques o que é o alandro?
- Está bem. O alandro, é um arbusto que pode medir até 3 metros de altura. Pode ter flores brancas e avermelhadas. O alandro apanha-se desde o final da Primavera até ao final do Verão. Em algumas zonas rurais, nomeadamente no Alentejo, a madeira é aproveitada para fazer cadeiras, que depois os artesãos forram o assento com buínho. Também fazem canudos, artisticamente decorados, para soprar o lume de chão e miniaturas de alfaias agrícolas.
Mas dizia eu, que estávamos na Primavera. Pois é, realmente é a estação das flores de muitas cores. Abundam os malmequeres, brancos e amarelos. E as papoilas, com a sua cor avermelhada, confundem-se com o manto doirado das espigas de trigo. As silvas também existem em grande número, cujas amoras servem de alimentação aos rouxinóis, melros e outras espécies de passarada.
No meio do pego, e por vezes junto à margem, não faltam as tabúas, a junça, o buínho e as frágeis e elegantes libelinhas, pousando no espelho de água e nas tabúas. Podemos ver borboletas das mais variadas cores voando rente à água, ou fazendo grandes acrobacias por entre as tabúas e o juncal.
- O que é o buínho? Diz-me lá, que eu gostava de saber.
- Ai este miúdo, tem muito que aprender. Eu explico. O buínho, é uma planta aquática, que se dá muito bem em algumas das nossas ribeiras. O caule é circular e pode medir até 2 metros de altura. Dizem os artesãos, que o mês de Maio, é o melhor mês para ir à ribeira ceifar o buínho, que depois aplicam na confecção de assentos das cadeiras. Então João, posso continuar?
- Sim, podes.
- Então, vamos lá continuar.
- Embora seja um rio muito pequeno, é muito bonito, precisamente por ter todas estas variedades de flora, muitas curvas, cujas águas quase abraçam a outra margem. A acrescentar a esta paisagem edílica, existem passarinhos das mais variadas cores e espécies, que logo pela manhã, pousados na copa das árvores, iniciam um lindo cantar. É certo que é menos musical, mas também não deixa de ser artístico, parecendo até um concerto executado pela banda de música da aldeia, que associado ao silêncio dos campos, o torna num local paradisíaco.
Por vezes, o rio é rodeado por altas escarpas de xisto. Com o passar de muitos anos, devido aos fortes ventos e chuvas, muitas daquelas lajes de xisto soltam-se, espalhando-se pelas íngremes encostas. Doutras vezes, caiem devido à acção do homem, quer seja através da agricultura, ou do seu arranque para a construção de habitações e muros, o que torna uma construção genuína, muito apreciada pelos habitantes locais e de outras regiões do país. São muitas destas lajes espalhadas ao logo das margens do rio, camufladas com bravia vegetação, que muitas vezes servem de toca para as lontras e seus filhotes.
De manhãzinha, mal o sol nasce, a mãe lontra, de nome Juca, começa o dia, com as suas mãozinhas ligadas por uma membrana, acariciando os dois filhotes, João e Joana, deitados sobre a frescura das ervas e a descansar de barriga para o ar. E assim, passam horas e horas, deleitando-se com os mimos da mãe.
Certo dia, o João e a Joana, iniciam uma viagem, rio abaixo à descoberta de outros locais, mas sempre com o pensamento de à noite regressarem à toca, para junto da mãe. Juca, já os tinha ensinado a defender-se dos homens e de outros predadores, que andam sempre por ali perto, escondidos nas margens, sorrateiramente à procura de alguma presa. Nadaram, nadaram, até se cansarem. Fatigados, decidiram fazer uma pequena paragem na margem do rio.
- Mana, foge já para dentro de água. Olha, vamos para aquele pego mais fundo para nos podermos esconder mais facilmente, disse o João.
- Que bicho era aquele tão feio, esquisito e grande! Que seria? Perguntou a Joana ainda meio assustada.
- Era um cão. Que horror! Que cheiro pestilento, diz o João com toda a autoridade de quem conhece o reino animal. Anda perdido, ou foi algum caçador que o abandonou por verificar que não era bom para caçar.
- Mas nós é que não temos culpa...Não queremos ser mordidos e muito menos servir-lhe de refeição. Não é nada parecido com a gente! Talvez não nos fizesse mal, mas nunca fiando. Podia ter fome e atacar-nos. Foi o melhor que fizemos. Não foi mano?
- Sim. Safa! Que susto. Livrámo-nos de boa. Foi por pouco. Agora ficamos aqui escondidos, mas temos que estar sempre alerta. Claro, para isso é que servem os nossos ouvidos, e pêlos que temos junto à boca e ao nariz.
Finalmente, ao fim de algum tempo, o perigo passou. O cão tinha resolvido partir.
- Vamos colher flores, para oferecer à nossa mãe, mas não nos podemos afastar muito um do outro e muito menos da margem, porque se aparecer algum perigo corremos novamente para a água.
- Boa ideia. Então vamos. Olha, há ali malmequeres, lírios e papoilas. Que bonito ramo vamos fazer! E deitaram mãos à obra.
- Agora é a vez da Joana dar ordens ao João. É certo que é mais nova, mas nessa questão de flores, ela é que sabe. Colhe ali aquela papoila e aqueles malmequeres, enquanto eu vou colher uns lírios, e um ou dois pés de rosmaninho, que cheiram muito bem. Vais ver como vamos fazer um bonito ramo, e a nossa mãe vai ficar tão contente...
- Pronto aqui tens. Agora, quero ver a tua habilidade, já que tu é que sabes, desabafou o João, um pouco amuado. Continuaram numa grande agitação e orgulhosos no trabalho de decoração da toca. Quando a mãe chegar, vai ter uma boa surpresa.
- Olha mana, estes brincos são para ti. Também te fiz um colar de malmequeres. Não tinha linha para enfiar os malmequeres, mas colhi um pé de junça e resultou. Toma, pendura-o ao pescoço. Não. Dá cá, que eu ajudo-te.
- Que bonito, mano! Muito obrigado, desabafou a Joana, já um pouco comovida, enquanto o João lhe dava a face para receber dois beijinhos em sinal de agradecimento.
Finalmente, a mãe chegou a casa. Quer dizer... à toca. Estava linda e cheia de flores. A mãe Levava um enorme peixe para o jantar. Enquanto comiam, cheios de entusiasmo, contavam à mãe as aventuras do dia. A mãe, ouvia-os com muita atenção e carinhosamente, disse-lhes:
- Sim, eu sei, sempre os acompanhei de perto, para ver como é que vocês ultrapassavam as dificuldades que existem no nosso habitat. Hoje passaram por uma experiência completamente nova, que se veio a traduzir numa boa prova de sobrevivência. Amanhã, deixo-os ir visitar a terra do avô.
- Boa, boa...
Nessa noite, o João e a Joana, nem dormiram aquele sono profundo como acontecia em noites anteriores. Mal rompeu o dia, levantaram-se de imediato para um passeio que eles consideravam muito especial, pois desta vez, tinham um local certo a visitar. Era a terra do avô, e isso excitava-os.
- Mãe, sabes alguma coisa sobre a terra do avô? Perguntaram os dois ao mesmo tempo, tal era o nervoso miudinho que se tinha apoderado deles.
- Sim. Uma vez o avô contou-me, que junto ao rio onde vive, existe um monte muito grande e importante, onde outrora existiram povos muito sábios, que se orientavam pelas estrelas e pelo sol. Sabiam ver quando chovia, nevava, fazia frio ou calor. Respeitavam as plantas e as árvores, os animais e as águas dos rios. Todos os homens eram amigos uns dos outros, e as crianças brincavam e corriam alegremente por entre flores de todas as cores que possas imaginar. Na margem do rio, tem uma pequena horta e um moinho para fazer farinha, um forno para cozer o pão com a farinha que acabara de moer, que como sabes, é muito bom para a nossa alimentação. Bom, vamos lá embora, porque se começa a fazer tarde.
Deram então início à viagem, só que desta vez, era feita rio acima, para o lado do tal monte muito grande. Tinham que vencer algumas correntes mais fortes das águas do rio, pois nadavam contra a corrente. Nadaram até se cansarem. E quando na margem do rio pararam para descansar, já um pequeno grupo de quatro jovens lontras tinha feito o mesmo. Com cautela, aproximaram-se e prontamente, o João perguntou:
- Como se chamavam, de onde vinham, para onde iam e porque é que estavam ali? Queria saber tudo sobre eles, e conforme as respostas, logo veria se podia confiar e serem amigos.
As respostas não tardaram. Logo o Duarte, com toda a sua sabedoria, e efusivamente fez as apresentações.
- Esta aqui é a Inês, esta é a Leonor e este é o Tomás. Estás a ver? Estes dois últimos, são os mais novos. Ainda têm alguma dificuldade em acompanhar o nosso ritmo de natação. Por isso tivemos que fazer aqui uma pausa. Não temos um destino certo, nem horário a cumprir. Simplesmente viemos dar um passeio, calmamente, para alertar dos perigos e preparar para a vida, estes dois mais novos, a Leonor e o Tomás, pois têm ainda muito que aprender. Têm que tomar conhecimento com outras águas e paisagens, uma vez que só conhecem a terra onde vivem com os pais. E então? Achas que respondi às tuas perguntas? Merecemos a tua confiança para podermos ser amigos?
- Bom... Não sei...respondeu o João com alguma hesitação.
- Está bem. Se não tens confiança...respondeu o Duarte e preparava-se para, abandonar as conversações, fazendo-se nitidamente desinteressado.
- Bom, está bem, respondeu finalmente o João.
- Então se nos consideras amigos, daqui em diante, eu gostava de ser o líder do grupo, porque bem vês, nós somos quatro e vocês são apenas dois. E não só. Eu tenho mais experiência, e conheço melhor estas águas do que tu. Sei onde pode estar o perigo à nossa espreita, e já viemos de mais longe. Tentava o Duarte justificar a sua proposta. Estás de acordo?
- Sim, não me importo. Eu só quero ir à terra do meu avô. Quero conhecer a horta e o moinho dele. Quero que ele me explique o funcionamento do moinho. Quero aprender a transformar os grãos de milho e os bagos de trigo em farinha, para fazermos pão. Quero aprender a deitar sementes à terra para nascerem as plantas, e a plantar couves e alfaces. Tudo. Quero aprender tudo o que o meu avô me possa ensinar, porque a minha mãe disse-me, que ele sabe muitas coisas. E assim, pode ser que um dia eu possa ensinar os meus filhos e os meus netos. Não me hei-de esquecer de tudo o que ele me vai ensinar. Não concordas comigo? Como vou adorar...eh, eh, eh.
Já agora, deixa fazer-te uma pergunta. Tu sabes, por acaso, onde é o moinho do meu avô? Ensinas-me o caminho?
- Claro que sei. Fica descansado, respondeu o Duarte, com ar de quem conhece bem o local. E o rio ainda era grande! Tinha muitos afluentes. Mas isso, para o Duarte, não constituía problema. E voltava a explicar. É só seguirmos rio acima, e depois, onde encontrarmos uma pequena enseada e um açude de pedra e cal, que os homens há muitos anos construíram para parar as águas, é logo ali. Não custa nada. Vais ver, que não vai ser difícil lá chegarmos.
E assim, todos partiram, sorridentes, de barbatanas dadas e abanando a cauda, calmamente, rio acima em direcção à horta e ao moinho do avô, que eles tanto desejavam conhecer.
Luís de Matos
Évora, 17 de Agosto de 2008